Afinal, por que as pessoas compartilham fake news?
Afinal, por que as pessoas compartilham fake news?
A psicologia da disseminação de conteúdos falsos
Ricardo Lins Horta
A crescente preocupação com a forma como a arquitetura e o funcionamento das redes sociais tĂŞm afetado nossas vidas tem mobilizado pesquisadores de vĂĄrias ĂĄreas. Fala-se dos efeitos na esfera pĂşblica da âpolarização afetivaâ, em que sociedades passam a ser divididas por grupos que nutrem Ăłdio um pelo outro[1]. Uma das frentes mais instigantes de pesquisa ĂŠ a de cientistas comportamentais que fazem experimentos com centenas ou milhares de pessoas, tentando entender quais mecanismos psicolĂłgicos ajudariam a explicar por que notĂcias evidentemente absurdas ou exageradas alcançam um pĂşblico tĂŁo amplo, e tĂŁo rĂĄpido.
Para compreender o fenômeno, Ê necessårio primeiro afastar qualquer narrativa arrogante de que pessoas são estúpidas ou irracionais por compartilhar tais conteúdos. Mesmo que a racionalidade humana apresente inúmeras falhas e limitaçþes, em geral as pessoas não são ingênuas. Se elas acreditam numa informação, geralmente isso ocorre porque ela jå passou por uma sÊrie de crivos: a mensagem foi difundida por uma fonte confiåvel da perspectiva do destinatårio, ou apela à identidade do seu grupo social, ou Ê coerente com uma sÊrie de argumentos aceitos e crenças prÊ-existentes[2].
Nesse sentido, a perda de credibilidade das instituiçþes tradicionais â governos, imprensa corporativa, universidades, cientistas â estĂĄ por trĂĄs de boa parte do problema[3]. Se as pessoas desconfiam desses emissores de informação, tudo o que disserem encontrarĂĄ maior escrutĂnio e ceticismo, ainda que seja uma afirmação tĂŁo radical quanto a de que vacinas façam mal, ou de que a Terra seja plana.
NotĂcias falsas ou exageradas, memes absurdos, conteĂşdo inflamatĂłrio, incitação do Ăłdio contra grupos polĂticos adversĂĄrios: por que as pessoas compartilham esses materiais? Do ponto de vista das ciĂŞncias comportamentais, outra lição que temos que aprender ĂŠ que embora esses conteĂşdos pareçam visivelmente mentirosos, muitos deles apelam de forma irresistĂvel a nossos impulsos. Por exemplo, uma notĂcia em tom de ameaça ao prĂłprio grupo de pertencimento ativa medos ancestrais â mesmo que pareça falsa, por ser ultrajante, ela desperta interesse. Ou seja, ĂŠ atraente do ponto de vista cognitivo[4].
NĂŁo por acaso, muitas das mensagens polĂticas que viralizam combinam a linguagem inflamatĂłria com um tom de ameaça e vitimização de um grupo social: isso gera a percepção no destinatĂĄrio de que todos estĂŁo sob ataque de um inimigo comum. A psicologia social nos ensina hĂĄ dĂŠcadas que, em situaçþes assim, pessoas privilegiam o seu senso de pertencimento ao grupo supostamente ameaçado, em vez de priorizarem a anĂĄlise crĂtica sobre a veracidade da mensagem[5]. Outro estudo recente, que analisou 2,7 milhĂľes de postagens no Facebook e no Twitter, apontou que postagens com linguagem negativa sobre o grupo polĂtico adversĂĄrio eram aquelas mais compartilhadas, numa demonstração do poder de motivaçþes tribalistas na mente das pessoas[6].
Mensagens viralizam quando capturam a atenção das pessoas. ConteĂşdos negativos do ponto de vista emocional despertam mais atenção do que conteĂşdos neutros ou positivos â e isso sempre foi assim, seja em interaçþes presenciais face a face, no momento da fofoca, no bar, ou no cafezinho, ou no conteĂşdo veiculado em programas de rĂĄdio e TV. PorĂŠm, as novas tecnologias fornecem, num nĂvel inĂŠdito, uma oferta inesgotĂĄvel disso: hĂĄ uma disponibilidade infinita de notĂcias sobre atos considerados imorais, corrupção no mundo da polĂtica, atrocidades em alguma parte do mundo, crimes brutais, ou atĂŠ mesmo fatos ou eventos que apenas contrariem os valores ou normas de determinados grupos sociais. As mĂdias digitais, assim, possibilitam um vasto mercado de âultraje moralâ, que mobiliza constantemente as emoçþes de seus usuĂĄrios de uma forma que nĂŁo se vĂŞ no mundo offline[7].
AlĂŠm da questĂŁo do ultraje, o compartilhamento estĂĄ ligado Ă falta de escrutĂnio das mensagens recebidas nas redes sociais. Uma das teorias mais tradicionais ĂŠ a do raciocĂnio polĂtico motivado como fator de disseminação das fake news. âRaciocĂnio motivadoâ ĂŠ o nome que psicĂłlogos dĂŁo para um fenĂ´meno robusto, replicado hĂĄ anos em vĂĄrios estudos: as pessoas avaliam informaçþes nĂŁo por seu valor de face, mas com vistas a confirmar conclusĂľes a que jĂĄ desejavam chegar[8]. O processamento que fazemos das informaçþes que chegam atĂŠ nĂłs dependeria de objetivos inconscientes, que incluem nĂŁo contrariar as prĂłprias crenças e preferĂŞncias de carĂĄter polĂtico-ideolĂłgico. Assim, informaçþes que confrontem essas crenças serĂŁo recebidas com ceticismo, ao passo que aquelas que sejam convergentes serĂŁo aceitas sem muito questionamento[9].
Achados mais recentes, todavia, tĂŞm sugerido que as pessoas compartilham notĂcias falsas nĂŁo tanto por serem alinhadas com suas crenças preconcebidas, mas simplesmente porque elas nĂŁo pensam muito antes de fazĂŞ-lo. Segundo essa teoria, as pessoas nĂŁo refletem profundamente sobre o que recebem â elas teriam, num certo sentido, âpreguiçaâ de avaliar criticamente o que chega via redes sociais[10]. Ao receberem uma mensagem que pareça exagerada, mas ao mesmo tempo divertida, as pessoas simplesmente vĂŁo compartilhĂĄ-la por impulso em seus grupos[11], e se neles nĂŁo houver quem as critique, esse comportamento serĂĄ reforçado.
A adoção de propostas de intervenção para um ambiente de debate mais saudåvel nas redes sociais depende fundamentalmente de quais as reais causas psicológicas por trås do fenômeno da viralização das fake news. Por muito tempo se defendeu que as intervençþes necessårias passariam por açþes de fact-checking, pelo incentivo à maior diversidade de argumentos, rompendo bolhas informacionais e câmaras de eco. PorÊm, talvez as mudanças necessårias nas plataformas de redes sociais passem tambÊm por mecanismos simples, que induzam as pessoas a parar e refletir com calma antes de compartilharem conteúdos.
[1] IYENGAR, Shanto et al, The origins and consequences of affective polarization in the United States, Annual Review of Political Science, v. 22, p. 129â146, 2019.
[2] MERCIER, Hugo, Not Born Yesterday: The science of who we trust and what to believe, Princeton: Princeton University Press, 2020.
[3] FINKEL, Eli J. et al, Political sectarianism in America, Science, v. 370, n. 6516, p. 533â536, 2020.
[4] ACERBI, Alberto, Cognitive attraction and online misinformation, Palgrave Communications, v. 5, n. 1, p. 1â7, 2019.
[5] VAN BAVEL, Jay J.; PACKER, Dominic J., The Power of Us, New York: Little, Brown Spark, 2021, p. 106â111.
[6] VAN BAVEL, Jay J. et al, Political Psychology in the Digital (mis)Information age: A Model of News Belief and Sharing, Social Issues and Policy Review, v. 15, n. 1, p. 84â113, 2021.
[7] CROCKETT, M. J., Moral outrage in the digital age, Nature Human Behaviour, v. 1, n. 11, p. 769â771, 2017.
[8] KUNDA, Ziva, The Case for Motivated Reasoning, Psychological Bulletin, v. 108, n. 3, p. 480â498, 1990.
[9] KAHAN, Dan M., The Politically Motivated Reasoning Paradigm, Part 1: What Politically Motivated Reasoning Is and How to Measure It, Emerging Trends in the Social and Behavioral Sciences, p. 1â16, 2016.
[10] PENNYCOOK, Gordon; RAND, David G., Lazy, not biased: Susceptibility to partisan fake news is better explained by lack of reasoning than by motivated reasoning, Cognition, v. 188, n. September 2017, p. 39â50, 2019.
[11] PENNYCOOK, Gordon; RAND, David G., The Psychology of Fake News, Trends in Cognitive Sciences, v. 25, n. 5, p. 388â402, 2021.
Ricardo Lins Horta ĂŠ doutor em Direito (UNB), Mestre em NeurociĂŞncias (UFMG), Professor de CiĂŞncias Comportamentais Aplicadas (ENAP).
ComentĂĄrios
Postar um comentĂĄrio