Afinal, por que as pessoas compartilham fake news?

 



Boas polĂŞmicas

out 20, 2021 | BOAS POLÊMICAS

Afinal, por que as pessoas compartilham fake news?

A psicologia da disseminação de conteúdos falsos

Ricardo Lins Horta

A crescente preocupação com a forma como a arquitetura e o funcionamento das redes sociais têm afetado nossas vidas tem mobilizado pesquisadores de várias áreas. Fala-se dos efeitos na esfera pública da “polarização afetiva”, em que sociedades passam a ser divididas por grupos que nutrem ódio um pelo outro[1]. Uma das frentes mais instigantes de pesquisa é a de cientistas comportamentais que fazem experimentos com centenas ou milhares de pessoas, tentando entender quais mecanismos psicológicos ajudariam a explicar por que notícias evidentemente absurdas ou exageradas alcançam um público tão amplo, e tão rápido.

Para compreender o fenĂ´meno, ĂŠ necessĂĄrio primeiro afastar qualquer narrativa arrogante de que pessoas sĂŁo estĂşpidas ou irracionais por compartilhar tais conteĂşdos. Mesmo que a racionalidade humana apresente inĂşmeras falhas e limitaçþes, em geral as pessoas nĂŁo sĂŁo ingĂŞnuas. Se elas acreditam numa informação, geralmente isso ocorre porque ela jĂĄ passou por uma sĂŠrie de crivos: a mensagem foi difundida por uma fonte confiĂĄvel da perspectiva do destinatĂĄrio, ou apela Ă  identidade do seu grupo social, ou ĂŠ coerente com uma sĂŠrie de argumentos aceitos e crenças prĂŠ-existentes[2].

Nesse sentido, a perda de credibilidade das instituições tradicionais – governos, imprensa corporativa, universidades, cientistas – está por trás de boa parte do problema[3]. Se as pessoas desconfiam desses emissores de informação, tudo o que disserem encontrará maior escrutínio e ceticismo, ainda que seja uma afirmação tão radical quanto a de que vacinas façam mal, ou de que a Terra seja plana.

NotĂ­cias falsas ou exageradas, memes absurdos, conteĂşdo inflamatĂłrio, incitação do Ăłdio contra grupos polĂ­ticos adversĂĄrios: por que as pessoas compartilham esses materiais? Do ponto de vista das ciĂŞncias comportamentais, outra lição que temos que aprender ĂŠ que embora esses conteĂşdos pareçam visivelmente mentirosos, muitos deles apelam de forma irresistĂ­vel a nossos impulsos. Por exemplo, uma notĂ­cia em tom de ameaça ao prĂłprio grupo de pertencimento ativa medos ancestrais – mesmo que pareça falsa, por ser ultrajante, ela desperta interesse. Ou seja, ĂŠ atraente do ponto de vista cognitivo[4].

Não por acaso, muitas das mensagens políticas que viralizam combinam a linguagem inflamatória com um tom de ameaça e vitimização de um grupo social: isso gera a percepção no destinatårio de que todos estão sob ataque de um inimigo comum. A psicologia social nos ensina hå dÊcadas que, em situaçþes assim, pessoas privilegiam o seu senso de pertencimento ao grupo supostamente ameaçado, em vez de priorizarem a anålise crítica sobre a veracidade da mensagem[5]. Outro estudo recente, que analisou 2,7 milhþes de postagens no Facebook e no Twitter, apontou que postagens com linguagem negativa sobre o grupo político adversårio eram aquelas mais compartilhadas, numa demonstração do poder de motivaçþes tribalistas na mente das pessoas[6].

Mensagens viralizam quando capturam a atenção das pessoas. ConteĂşdos negativos do ponto de vista emocional despertam mais atenção do que conteĂşdos neutros ou positivos – e isso sempre foi assim, seja em interaçþes presenciais face a face, no momento da fofoca, no bar, ou no cafezinho, ou no conteĂşdo veiculado em programas de rĂĄdio e TV. PorĂŠm, as novas tecnologias fornecem, num nĂ­vel inĂŠdito, uma oferta inesgotĂĄvel disso: hĂĄ uma disponibilidade infinita de notĂ­cias sobre atos considerados imorais, corrupção no mundo da polĂ­tica, atrocidades em alguma parte do mundo, crimes brutais, ou atĂŠ mesmo fatos ou eventos que apenas contrariem os valores ou normas de determinados grupos sociais. As mĂ­dias digitais, assim, possibilitam um vasto mercado de “ultraje moral”, que mobiliza constantemente as emoçþes de seus usuĂĄrios de uma forma que nĂŁo se vĂŞ no mundo offline[7].

AlĂŠm da questĂŁo do ultraje, o compartilhamento estĂĄ ligado Ă  falta de escrutĂ­nio das mensagens recebidas nas redes sociais. Uma das teorias mais tradicionais ĂŠ a do raciocĂ­nio polĂ­tico motivado como fator de disseminação das fake news. “RaciocĂ­nio motivado” ĂŠ o nome que psicĂłlogos dĂŁo para um fenĂ´meno robusto, replicado hĂĄ anos em vĂĄrios estudos: as pessoas avaliam informaçþes nĂŁo por seu valor de face, mas com vistas a confirmar conclusĂľes a que jĂĄ desejavam chegar[8]. O processamento que fazemos das informaçþes que chegam atĂŠ nĂłs dependeria de objetivos inconscientes, que incluem nĂŁo contrariar as prĂłprias crenças e preferĂŞncias de carĂĄter polĂ­tico-ideolĂłgico. Assim, informaçþes que confrontem essas crenças serĂŁo recebidas com ceticismo, ao passo que aquelas que sejam convergentes serĂŁo aceitas sem muito questionamento[9].

Achados mais recentes, todavia, têm sugerido que as pessoas compartilham notícias falsas não tanto por serem alinhadas com suas crenças preconcebidas, mas simplesmente porque elas não pensam muito antes de fazê-lo. Segundo essa teoria, as pessoas não refletem profundamente sobre o que recebem – elas teriam, num certo sentido, “preguiça” de avaliar criticamente o que chega via redes sociais[10]. Ao receberem uma mensagem que pareça exagerada, mas ao mesmo tempo divertida, as pessoas simplesmente vão compartilhá-la por impulso em seus grupos[11], e se neles não houver quem as critique, esse comportamento será reforçado.

A adoção de propostas de intervenção para um ambiente de debate mais saudĂĄvel nas redes sociais depende fundamentalmente de quais as reais causas psicolĂłgicas por trĂĄs do fenĂ´meno da viralização das fake news. Por muito tempo se defendeu que as intervençþes necessĂĄrias passariam por açþes de fact-checking, pelo incentivo Ă  maior diversidade de argumentos, rompendo bolhas informacionais e câmaras de eco. PorĂŠm, talvez as mudanças necessĂĄrias nas plataformas de redes sociais passem tambĂŠm por mecanismos simples, que induzam as pessoas a parar e refletir com calma antes de compartilharem conteĂşdos.

[1] IYENGAR, Shanto et al, The origins and consequences of affective polarization in the United States, Annual Review of Political Science, v. 22, p. 129–146, 2019.

[2] MERCIER, Hugo, Not Born Yesterday: The science of who we trust and what to believe, Princeton: Princeton University Press, 2020.

[3] FINKEL, Eli J. et al, Political sectarianism in America, Science, v. 370, n. 6516, p. 533–536, 2020.

[4] ACERBI, Alberto, Cognitive attraction and online misinformation, Palgrave Communications, v. 5, n. 1, p. 1–7, 2019.

[5] VAN BAVEL, Jay J.; PACKER, Dominic J., The Power of Us, New York: Little, Brown Spark, 2021, p. 106–111.

[6] VAN BAVEL, Jay J. et al, Political Psychology in the Digital (mis)Information age: A Model of News Belief and Sharing, Social Issues and Policy Review, v. 15, n. 1, p. 84–113, 2021.

[7] CROCKETT, M. J., Moral outrage in the digital age, Nature Human Behaviour, v. 1, n. 11, p. 769–771, 2017.

[8] KUNDA, Ziva, The Case for Motivated Reasoning, Psychological Bulletin, v. 108, n. 3, p. 480–498, 1990.

[9] KAHAN, Dan M., The Politically Motivated Reasoning Paradigm, Part 1: What Politically Motivated Reasoning Is and How to Measure It, Emerging Trends in the Social and Behavioral Sciences, p. 1–16, 2016.

[10] PENNYCOOK, Gordon; RAND, David G., Lazy, not biased: Susceptibility to partisan fake news is better explained by lack of reasoning than by motivated reasoning, Cognition, v. 188, n. September 2017, p. 39–50, 2019.

[11] PENNYCOOK, Gordon; RAND, David G., The Psychology of Fake News, Trends in Cognitive Sciences, v. 25, n. 5, p. 388–402, 2021.

 

Ricardo Lins Horta ĂŠ doutor em Direito (UNB), Mestre em NeurociĂŞncias (UFMG), Professor de CiĂŞncias Comportamentais Aplicadas (ENAP).

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